A segunda sessão do evento “Aperfeiçoando a gestão de recursos hídricos em um mundo em transformação” foi coordenada pela engenheira geofísica cubana Mercedes Arellano Acosta e teve como relator o virologista Fernando Spilki, professor da Universidade Feevale, em Novo Hamburgo, no Rio Grande do Sul.
Chandrakant Damodar Thatte, Mercedes Arellano Acosta,
Sílvio Crestana e Jean-Marie Fritsch
O primeiro palestrante foi Sílvio Crestana, doutorado em Física pela Universidade de São Paulo (USP-São Carlos), com pós-doutorados em Ciência do Solo e Ciências Ambientais (Universidade da Califórnia, EUA) e em Hidrologia, no Serviço de Pesquisa em Agricultura (USDA, na sigla em inglês), em Maryland, nos EUA.
Crestana tratou da relação entre a agricultura tropical e os recursos hídricos. Ele destacou, de início, a exploração massiva de recursos hídricos pelo setor primário: dos 1,5 bilhões de hectares cultivados no planeta, em torno de 18% são irrigados, o que corresponde a 50% da produção mundial de alimentos. “No Brasil, 47% da água captada são destinados à irrigação de cultivos e 10% são destinados ao consumo de animais e da população rural. Os 43% restantes servem às populações urbanas, à indústria e outras atividades.”
Tendo atuado por cinco anos como diretor-presidente da Embrapa, Crestana falou sobre a composição do Sistema Nacional de Pesquisa em Agricultura, uma conjunção ampla de instituições como a Embrapa, o Conselho Nacional de Desenvolvimento (CNPq/MCTI), as fundações de amparo à pesquisa dos estados (FAPs) e entidades privadas, “entre outras que têm somado esforços e investido fortemente em temas prioritários para o setor primário brasileiro”. Dentre as características da produção primária brasileira, destacou o forte componente da agricultura familiar e a adoção de tecnologias adaptadas à agricultura tropical, tais como o uso da fixação de nitrogênio no solo por bactérias e de métodos que permitem a economia de recursos hídricos, incluindo o sistema de plantio direto e a integração lavoura-pecuária-silvicultura.
Ele ressaltou que os investimentos em ciência e tecnologia (C&T) no país ainda são escassos, totalizando não mais que 1,1 % do produto interno bruto, valor muito inferior ao de outras nações desenvolvidas – ou mesmo em desenvolvimento. “Ainda assim, a tecnologia gerada e os produtos desenvolvidos ao longo dos anos têm permitido que a agricultura e as atividades relacionadas a ela contribuam com 28% do PIB, empreguem 37% da força de trabalho e representem 42% das exportações brasileiras”, apontou o pesquisador.
Crestana referiu-se ainda a outros aspectos relacionados à conservação dos ecossistemas e à produção agrícola, como a adoção da bacia hidrográfica como unidade de manejo dos recursos hídricos, o estudos de balanços de massa e energia nestes ambientes e estudos de simulação e modelagem. Ele destacou ainda a oportunidade criada pelo uso de tecnologias convergentes – tais como nanotecnologia, biotecnologia e ciência da informação – na geração de sistemas sustentáveis de produção. O especialista destacou que vem sendo construída uma iniciativa neste sentido através da cooperação entre a Embrapa São Carlos, o Instituto Internacional de Ecologia e outras instituições de ensino e pesquisa brasileiras. Atualmente, Crestana é professor convidado e orientador no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Engenharia Ambiental da Escola de Engenharia da USP de São Carlos, no Centro de Recursos Hídricos e Ecologia Aplicada do Departamento de Hidráulica e Saneamento.
“A recuperação de áreas degradadas, o desenvolvimento e exploração de tecnologias convergentes, a mensuração da pegada ecológica e estudos do ciclo de vida de produtos agrícolas e derivados, o estabelecimento de indicadores de sustentabilidade e resiliência dos sistemas agropastoris, simulações e previsões de cenários como base para o planejamento estratégico. Esses são os temas, a meu ver, que concentram hoje as maiores oportunidades de colaboração para pesquisa em ciência e tecnologia para agricultura no Brasil”, sinalizou o especialista.
Desequilíbrio na sustentabilidade agrícola gera problemas imediatos para a população
Dando continuidade à sessão, falou o Doutor em Engenharia Civil/Modelagem Hidráulica Chandrakant Damodar Thatte – que foi secretário do Ministério de Recursos Hídricos do Governo da Índia, onde ainda atua como consultor honorário, assim como para a Suprema Corte da Índia, governos estaduais e organizações internacionais. Ele destacou a necessidade de se manter o aumento constante da produção agrícola, porém reduzindo o uso da água, buscando alternativas de otimização da irrigação. Tais metas seriam importantes no sentido de minimizar os efeitos deletérios das mudanças climáticas, da degradação do solo e contribuiriam para um uso da água com menos efeitos negativos sobre sua qualidade. “A humanidade precisa reconhecer que o direito água vem também acoplado a deveres”, destacou Thatte.
A eficiência no uso da água está relacionada aos vários níveis de governança e aos diferentes valores da sociedade, “sejam eles de ordem científica, tecnológica, social ou administrativa”, observou o pesquisador. Para que se alcancem níveis ótimos de eficiência, deve-se ter em mente o preenchimento de necessidades relacionadas à infraestrutura, desenvolvimento e viabilidade econômica. Thatte ressaltou que o manejo adequado da água na agricultura tem estreita relação com a segurança alimentar, por permitir a produção de vegetais destinados ao consumo humano e animal, à pesca e à produção de biocombustíveis em quantidades suficientes. “Quando o equilíbrio da produção agrícola sustentável é rompido, emergem problemas na população humana, incluindo a pobreza, desnutrição, acúmulo de pesticidas no ambiente, perdas na produtividade e diminuição da resiliência dos sistemas produtivos a intempéries e desastres”, alertou o especialista.
Água virtual e a segurança alimentar global rumo ao ano 2050
Em seguida, apresentou-se o hidrologista Jean-Marie Fritsch, doutorado na Universidade de Montpellier, na França, que trabalha desde 1970 no Instituto Francês de Pesquisa para o Desenvolvimento (antigamente Orstrom, hoje IRD, na sigla em francês), atuando na África subsaariana, no nordeste do Brasil, no sudeste da Ásia e na Guiana Francesa. Fritsch dirigiu a divisão de engenharia do IRD e implementou o Sistema Mundial de Observação Hidrológica (WHYCOS, na sigla em inglês) no oeste e no sul da África.
Fritsch deu exemplos ilustrativos do conceito de água virtual: “enquanto para uma xícara contendo 125 ml de chá, foram gastos no cultivo da planta 17 litros de água, para outra xícara contendo o mesmo volume de café são consumidos 140 litros de água na produção do grão”. Números mais dramáticos estão relacionados à produção de carne bovina, onde cada quilo de carne produzida representa o consumo de aproximadamente 15.500 litros de água. “Fatos como este aumentam em muito a pegada ecológica anual da humanidade: 92% da quantidade de água que consumimos anualmente estão relacionados à produção de alimentos”, ressaltou o pesquisador. Fritsch acrescentou que até 20% de todo o comércio mundial gira em torno doo transporte de água virtual de um país a outro. “Prevendo uma população de nove bilhões de seres humanos em 2050, fica evidente a urgência de alternativas de menor consumo de água”, alertou o hidrologista.
Para o palestrante, são necessárias desde medidas individuais, tais como a redução do consumo de calorias de origem animal, até a prevenção de perdas e desperdícios ao longo de toda a cadeia de produção de alimentos. Para tanto, estratégias que visem o aumento da eficiência da produção agrícola, incluindo o aumento da produção total, da intensidade de plantio e das áreas cultivadas são benéficas.
Fritsch apontou que a redução de perdas de alimentos no beneficiamento e transporte, o uso de processos de irrigação otimizados e o incremento do cultivo baseado no uso de água da chuva seriam ainda alternativas importantes no sentido de minimizar o uso de fontes não renováveis de água, especialmente em regiões sob risco de insegurança alimentar.
“Um melhor balanço entre déficits e abusos no uso da água na agricultura também seriam uma meta importante”. Tudo isto sem perder de vista a necessidade de produzir com menos defensivos agrícolas, visando minimizar as perdas na qualidade da água. “Outro desafio relevante seria compatibilizar a produção de biocombustíveis com a manutenção de níveis adequados de produção de alimentos”, observou o pesquisador.