Da Amazônia ao Rio de Janeiro, a bióloga da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Sandra Azevedo persegue as cianobactérias em rios, mananciais e reservatórios. Há mais de 30 anos, o Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho (IBCCF), do qual ela é pesquisadora, atua nessa área. Por isso, sua ligação com a região amazônica não é de hoje e, quando saiu o edital dos Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCTs), criados pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), o grupo de Sandra teve seu projeto aprovado. Assim, em 2008, foi criado o Instituto Nacional de Pesquisa Translacional em Saúde e Ambiente da Região Amazônica (INPeTAM), coordenado pelo Acadêmico George Alexandre dos Reis. No final de junho, Sandra participou do simpósio “Aperfeiçoando a gestão de recursos hídricos em um mundo em transformação: Academias de Ciências trabalhando juntas para ampliar o acesso à água e ao saneamento”, organizado pelo também Membro Titular José Galizia Tundisi, e apresentou sua pesquisa.
“Na época que surgiu o edital dos INCTs, já estávamos fazendo uma pesquisa de meio ambiente na região”, conta Sandra, que tem mestrado e doutorado em Ecologia e Recursos Naturais, além de dois pós-doutorados pela Wright State University, nos Estados Unidos. “Estudávamos a questão do garimpo e da contaminação de peixes e pessoas pelo mercúrio presente nos rios, além dos problemas derivados das construções de grandes reservatórios de usinas hidrelétricas, e isso abriu perspectivas para outros estudos.”
As inexplicáveis cianobactérias na Amazônia
Sandra conta que, em 2006, teve contato com o grupo do professor Wanderley Bastos (também do INPeTAM), que iniciava uma pesquisa no reservatório de Samuel no rio Jamari, em Rondônia, onde, surpreendentemente, foi constatada uma incidência muito alta de cianobactérias tóxicas. “Teoricamente, lá não tem uma qualidade de água nem um grande impacto antrópico que justificasse essa dominância, então eu quis entender o porquê.”
Os pesquisadores analisaram, então, o impacto da construção de novas hidrelétricas naquela bacia, a mudança no fluxo de água associada às condições ambientais da região – uma vez que o rio é represado, aquela biota é modificada, peixes que migravam deixam de fazê-lo e algumas espécies são privilegiadas em detrimento de outras -, além do adensamento de população, que ela explica: “Quando você constrói uma usina hidrelétrica, acaba criando uma verdadeira cidade de pessoas trabalhando na obra. Mas é claro que ninguém faz uma rede de saneamento para esses milhares de pessoas, e isso tem impacto no rio”. A bióloga lamenta o fato de ser muito raro as pessoas atuarem antes do problema. “Geralmente só fazem alguma coisa depois que ele aconteceu.”
O grupo constatou que todos esses fatores tiveram impacto no ecossistema, o que poderia ter provocado a presença das cianobactérias. “Meu trabalho é tentar entender o porquê desses microorganismos existirem nos reservatórios da região amazônica, uma vez que a dinâmica de lá é diferente da do Sudeste”, explica. “Aqui, as cianobactérias já são analisadas há três décadas. Conhecemos muito bem a atuação dos reservatórios, os impactos das ações humanas, o fluxo da água, temos estações muito mais marcadas, e também já fizemos vários estudos analisando as consequências dessa floração.”
Sandra explica, ainda, que, como os níveis de nitrogênio e fósforo não justificavam a presença de cianobactérias na região de Rondônia, o grupo deu atenção também à estabilidade do sistema e à alta temperatura da água. “Devido a esse monitoramento da temperatura, começamos também um estudo sobre impactos das mudanças climáticas nas cianobactérias, de modo a observar se isso propicia ou prejudica o seu crescimento. Dentro desse eixo do INPeTam, nosso intuito é tentar comparar a região Sudeste com a região amazônica, traçando os níveis de variação do gás carbônico, temperatura do sistema etc.

A pesquisadora Sandra Azevedo no laboratório de cianobactérias do Instituto de Biofísica da UFRJ
“Caras-pálidas” X ribeirinhos
No entanto, em relação à construção dos reservatórios, Sandra diz que há um fator ainda mais importante: o impacto social. Os alagamentos, consequentes da concepção das hidrelétricas, implicam na remoção das populações ribeirinhas, quase sempre à força: “Os caras-pálidas acham que fazem um favor deslocando-os para uma casa de concreto, no asfalto, em um lugar alto e quente, porque bate muito sol. Mas não há identidade cultural”. A pesquisadora informa que os ribeirinhos são pescadores que vivem em harmonia com aquele ecossistema, mas com essas mudanças, acabam tendo que interromper sua atividade. “Eles passam a ganhar um salário mínimo, mas não ficam felizes – acabam bebendo, se prostituindo.”
Segundo Sandra, as pessoas não compreendem que os ribeirinhos estão satisfeitos onde moram, ainda que em palafitas simples. “As casas deles são limpas, para a nossa surpresa, já que somos ignorantes no assunto. Ninguém pode entrar nela com sapato. Além disso, a dieta deles é saudável, baseada em peixe, sem muito sódio e carboidrato. Ou seja, os ribeirinhos podem ter verminose, baixa escolaridade, mas são saudáveis, com dentes maravilhosos.”
Ela diz que não importa se são dez ou 100 famílias, pois são os construtores que estão entrando no espaço delas, então é preciso buscar a integração, de modo a haver um ambiente mais harmônico. “E estas famílias não têm a opção de não aceitar, até porque existe o argumento legal de que elas não são donas da terra. Além disso, não dá para deslocá-las para uma área semelhante por causa da questão jurídica – as empresas devem levá-las para áreas legalizadas.”
Mas o que são as cianobactérias?
De acordo com a bióloga, seu laboratório na UFRJ foi o primeiro a atuar no estudo das cianobactérias. Elas são microorganismos procarióticos, ou seja, têm estrutura celular que corresponde à célula de uma bactéria, e são fotossintetizantes. Sandra afirma que é natural todo ambiente aquático ter cianobactérias. “Esses microorganismos estão aqui há pelo menos 3 milhões de anos.” Ela explica que, naquele tempo, os lagos não eram cristalinos, mas sim como um “sopão” de matéria orgânica. E parece que estamos voltando a esse “sopão”.
Apesar de ser normal a presença de cianobactérias no mar, a incidência delas aumentou com a formação dos grandes centros e o crescimento industrial e urbano desordenado. Isso está relacionado ao fato de a cultura humana só se instalar onde tem água – exceto algumas populações, como as do deserto. Ou seja, as pessoas moram mais ao longo da costa, por isso o impacto das ações do homem tende a ser grande no mar. “Estamos dando todas as condições para elas se desenvolverem excessivamente. Nas lagoas da Barra da Tijuca, ela é identificada como uma nata verde na superfície.”
O que acontece nos mares e lagoas é o processo de eutrofização, fenômeno causado pelo enriquecimento do corpo dágua com entrada excessiva de matéria orgânica. (Saiba mais sobre o assunto na entrevista com os pesquisadores do International Lake Environment Committee Foundation – ILEC, instituição que também participou do simpósio sobre recursos hídricos e na qual Sandra representa o Brasil). Várias condições estão relacionadas com essa presença de cianobactérias: no caso da Lagoa de Jacarepaguá, por exemplo, a chegada da frente fria acaba trazendo sal, misturando sedimentos e “revirando o sopão”, de modo que somem populações de microorganismos e surgem outras.

Exemplos de cianobactérias vistas no microscópio
Os problemas em torno da “nata verde”
Mas qual é o real prejuízo das cianobactérias? Quando mortas, elas liberam toxinas nocivas à saúde humana, sendo algumas bastante fortes. Essas toxinas, em contato com o ser humano – através, por exemplo, da ingestão da água ou de peixes contaminados – podem provocar danos no fígado e sintomas como diarréia, inflamações e coceiras na pele. E, se o mar está cheio dessas toxinas, engana-se quem pensa que está livre da contaminação ficando apenas na areia, sem entrar na água: inalar a maresia é cem vezes mais prejudicial do que ingerir a água contaminada, pois o ar também fica tóxico. “Os políticos não querem ver o problema; acham que o solucionam se jogarem sulfato de cobre na água para matar esses microorganismos, e isso justamente aumenta o dano, porque aí sim as toxinas são liberadas”, critica a pesquisadora. “Mas eles fazem pela aparência – só querem sumir com a nata verde do mar.”
Sandra comenta que, se o problema acontece no Rio de Janeiro – como foi o caso no ano passado, em que um trecho da praia da Barra da Tijuca foi interditado pela defesa civil devido a uma concentração de cianobactérias seis vezes maior do que o aceitável -, é possível cobrar a Companhia Estadual de Água e Esgoto (Cedae) pela manutenção do nível mínimo da qualidade da água estabelecido. Mas, em regiões de escassez como o Nordeste, o que a população quer é simplesmente ter água. “Eles não estão preocupados com a qualidade – antes vem a quantidade”, diz a bióloga. “Só que água não tem plano B: quando o camarão está contaminado, a pessoa come farinha, mas com água não tem solução. Eu não posso chegar lá e mandar parar o abastecimento sem dar uma solução.”
Ela conta também que ainda não se sabe por que a cianobactéria produz toxinas quando morta. “Além disso, está sendo estudado por quanto tempo a água fica tóxica. Já temos uma noção de que não é por menos do que quatro semanas, um tempo que não dá para ficar sem abastecimento.” Os estudos mostram que a duração da toxicidade da água depende muito da história daquele ambiente: se é a primeira vez que o problema ocorre no lugar, ele vai perdurar muito mais. Isso porque não existirá outro tipo de bactéria adaptado para degradar aquela toxina.
Segundo Sandra, uma das dificuldades da pesquisa é o desconhecimento das pessoas, que costumam se preocupar com problemas dessa natureza apenas quando há vítimas fatais imediatas. “Em regiões carentes de recursos hídricos, o abastecimento geralmente não é interrompido porque não morre ninguém. É necessário que os hospitais estejam abarrotados de gente passando mal e morrendo para que os governantes olhem para o problema.”
Entretanto, é preciso prestar atenção, justamente, no efeito crônico da exposição à água contaminada, que é ainda mais cruel. “Quais serão as consequências a longo prazo para a saúde pública, quando temos pessoas em contato com essa água?”, questiona a pesquisadora. “Qual o efeito da exposição contínua em doses pequenas? O problema é que, se daqui a 30 anos, o sorveteiro da praia que inala aquela maresia contaminada todo dia vai ter um câncer hepático, as pessoas não ficam chocadas.”
Os avanços e as demandas
Para Sandra, é motivo de orgulho o fato de que o Brasil foi o primeiro país a criar uma legislação que obriga o monitoramento e contagem de cianobactérias e a análise de cianotoxinas na água. “É claro que, para garantir que se cumpra essa legislação, existe um caminho imenso”, diz. “Mas sem as leis, nós não temos nem o direito de exigir esse controle.” Ela conta que, agora, seu grupo se dedica à divulgação deste conhecimento para alunos de escola pública, visando ampliar a consciência deles e transformá-los em formadores de opinião. Mas lamenta o fato de que, enquanto locais mais privilegiados têm tratamento de água com carbono ativado, outros recebem água sem nenhum tratamento. “Temos, no país, situações em que parece que vivemos em eras da evolução humana completamente distintas: falamos em altíssima tecnologia, ficamos nervosos quando o wireless não funciona, e ao mesmo tempo convivemos no mesmo espaço com populações inteiras sem direito a água potável.”
A bióloga tem esperanças de que, a partir dos investimentos destinados às Olimpíadas, não se olhe apenas para as demandas paisagísticas, mas também para a saúde pública. Ela diz que esse é um fator preocupante em toda a América Latina, cujos recursos hídricos – incluindo reservatórios que abastecem os grandes centros urbanos – recebem despejos orgânicos e esgoto in natura de todas as cidades que dependem deles. “Então, nesse caso, qual é a diferença se bebermos água do vaso sanitário?”, provoca.
Sandra explica que essa vinculação entre saúde ambiental e pública foge do domínio das ciências biológicas. Trata-se de uma questão multidisciplinar. “Nós não somos os tomadores de decisão. Podemos ajudar a identificar o problema, até tentar buscar uma solução, mas entra também a influência da engenharia, de administração e da política. É preciso sentar-se em uma mesa com pessoas das mais diferentes áreas e chegar a um consenso – uma verdadeira lição de humildade.”