Historicamente, a América Latina é uma região que congrega valores de diferentes culturas, um depósito de diferentes heranças coloniais. Com tantas divergências e, ainda assim, semelhanças, o papel da Ciência, Tecnologia e Inovação (C,T&I) nesse âmbito foi intensamente abordado na palestra “O papel da universidade na integração latino-americana”, realizada no dia 24/7, durante a 64ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Com participação do Acadêmico Sérgio Mascarenhas de Oliveira, o encontro também contou com os pesquisadores Ennio Candotti, Marcelo Morales e Roberto Mendonça.

Marcelo Morales, Ennio Candotti, Sérgio Mascarenhas e Roberto Mendonça

 
Presidente da Federação Latino-Americana de Sociedades de Biofísica e ex-presidente da Sociedade Brasileira de Biofísica (SBBf), eleito há dez anos, Morales é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ele é um dos representantes da pequena comunidade de biofísicos no Brasil. “Quando assumi a gestão da SBBf, priorizei uma atuação mais internacional, porque a história da Biofísica na América Latina (AL) é muito valiosa”, pontuou.

A seu ver, o fato do país estar posicionado em 13º lugar no ranking mundial de produção científica capacita o Brasil a liderar o desenvolvimento conjunto da região. Pensando nisso, a Sociedade participou da criação da pós-graduação latino-americana de Biofísica, “uma experiência rica que proporciona aos estudantes um intercâmbio de conhecimento dentro do âmbito da AL”, explicou. “Esse é um exemplo da SBBf que pode servir como estímulo para que outras entidades e demais áreas da ciência pratiquem o mesmo”.

De acordo com ele, o primordial é dar continuidade à iniciativa e não deixá-la morrer. Os fatores que mais motivaram esse engajamento foram a carência de pós-graduação especializada na região; a perda de aporte humano potencial, já que muitos pesquisadores se mudam para outros países por falta de oportunidade; a presença de centros de excelência que poderiam integrar um sistema avançado no estudo da biofísica; e a falta de treinamento. Iniciado em 2006, com o intuito de ajudar os profissionais a enfrentarem as dificuldades mais proeminentes, atualmente o projeto reúne representantes de diversos países além do Brasil, como Argentina, Chile, Colômbia, Uruguai e Venezuela.

“Temos duas pós-graduações brasileiras em biofísica, ambas localizadas no Rio de Janeiro, e duas sociedades, sendo a segunda a da Argentina. No entanto, os grupos que trabalham com a área são, em número, significantes”, disse Morales. “Tendo esse pensamento como horizonte, por que não integrar os grupos e fortalecer nosso campo de atuação?”. A estrutura do programa conta com a coordenação de um pesquisador designado pela União Internacional de Biofísica (IUPAB). Para o aluno que já está dentro de uma instituição da área, o programa atua como uma complementação. No exemplo dado por Morales, um estudante do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho (IBCCF/UFRJ), contemplado com uma estrutura mais consolidada, pode viajar para as entidades dos demais países que constituem o programa. “Ao final da experiência, ele ganha um certificado internacional sobre a complementação da pós-graduação realizada”.

No entanto, um aluno que não encontre infraestrutura e cursos de mestrado e doutorado adequados em seu país, pode recorrer à pós-graduação latino-americana e receber um diploma específico. No total, já foram atendidos 209 alunos e 37 novas pós-graduações participam do projeto. “O sucesso dessa iniciativa regional é tão grande que já se espalhou para os continentes asiático e europeu”, frisou Morales. “Recentemente, conseguimos um financiamento internacional para trazer dez alunos africanos para alguns cursos oferecidos pela pós-graduação”.

O pesquisador comenta que também existem dificuldades porque o programa se expande cada vez mais, o que requer investimentos para financiar o intercâmbio dos alunos. Dentre as próximas ações ele pontuou a adesão de grupos de alunos de outras nações das Américas Central e do Sul; uma maior interação com a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), tendo como objetivo a utilização dos acordos internacionais e seus mecanismos para continuar a estimular o programa; e a ampliação da participação de estudantes africanos.

“Por que não saber nossa história através da história de outros povos?”

Com muita imaginação e descrevendo a cultura de cidades espalhadas por diversas regiões do planeta, o presidente de honra da SBPC e diretor do Museu da Amazônia (Musa), Ennio Candotti, falou de sonhos, do avanço da tecnologia e de perspectivas. Segundo ele, o papel mais fundamental de uma universidade latino-americana é estimular a curiosidade. “Existem muitos hábitos culturais e histórias na região. Por que não abrir as portas para essa diversidade que é, inclusive, científica?”, indagou.

Marcada por otimismo, sua exposição deu grande destaque à mobilidade humana, tão encorajada por universidades brasileiras e estrangeiras. Recentemente, o Programa Ciência sem Fronteiras vem estimulando essa troca de conhecimento, impulsionando estudantes brasileiros a buscarem experiências de estudo em instituições estrangeiras, bem como pesquisadores de outros países a virem ao Brasil. “É comum observar universitários realizando intercâmbios nos mais diferentes países, o que é enriquecedor e valorizado no mercado de trabalho, pois as empresas buscam essa visão de mundo ampliada”, disse.

De acordo com ele, existem inúmeras colaborações entre os países da AL nas áreas de física, matemática, astronomia e astrofísica, assim como grupos de pesquisa de excelência que trabalham sem apoio e necessitam de suporte humano e financeiro. “Com um terreno bem preparado, esses grupos poderiam evoluir em conjunto, trocando conhecimentos”, sublinhou. Dando destaque especial à educação, o pesquisador deu o exemplo dos japoneses, que constroem suas cidades ao redor de uma escola principal. Para ele, no dia em que os centros de ensino deixarem de ser construídos e pensados por último, o país estará no caminho certo.

“Imaginem uma seleção de futebol que mistura jogadores do Brasil e Argentina, todos juntos, com a mesma camisa, Pelé e Maradona pelo mesmo lado do campo”, brincou Candotti. “A grande questão é que temos times muito bons, mas juntos temos um time melhor ainda. Esse é o principal objetivo de uma universidade integrada da AL”.

Pensando o presente com sistemas complexos

Segundo o físico e Acadêmico Sérgio Mascarenhas de Oliveira, a grande problemática da AL são as dificuldades encontradas em muitas vertentes, como educação, transporte, saúde, engenharia, logística, alimentos, entre outras. Em suas palavras, são situações que não podem ser resolvidas do ponto de vista de um único parâmetro. “É como se fosse um efeito dominó: uma ação gera outra. A solução é uma perspectiva de vários ângulos, com muitas variáveis, porque as questões a serem consideradas são tão enormes que requerem uma gestão multidisciplinar e integrada”, salientou.

Partindo disso, o pesquisador propôs criar um centro de preparação de profissionais que lidam com esse cenário, considerados sistemas complexos. “Creio que a Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila) poderia ser o útero dessa grande rede, que trataria desses problemas, inclusive da precariedade dos serviços no contexto da AL”.

O físico também mencionou a educação básica e aprendizagem infantil, que envolvem a criança nos primeiros anos de vida. Para ele, o desamparo infantil é um dos problemas mais profundos e graves do sistema educacional. “É uma idade muito rica, onde o estímulo é fundamental e a criatividade da criança podem fazer dela um profissional com excelentes ideias e propostas. A base na educação infantil garante um cidadão bem preparado, inclusive para enfrentar as adversidades de seu país”, afirmou.

Fome de conhecimento

O professor titular de Física da Universidade de São Paulo (USP) Roberto Mendonça observou que, do ponto de vista da C,T&I, existem iniciativas excelentes na região. Em sua opinião, o que falta para os países das Américas Central e do Sul é compreender que a solução para os problemas de justiça social e desigualdade é justamente mais investimento em ciência.

“A AL tem que fortalecer seus centros científicos, a fim de ganharem em competitividade”, observou. Um exemplo histórico, segundo ele, foi o investimento em C,T&I feito pelos tigres asiáticos – Hong Kong, Singapura, Coreia do Sul e Taiwan – que saíram da linha do subdesenvolvimento em função dos aportes financeiros em educação e ciência. “A população em geral tem que valorizar o sistema de ensino. No dia em que brasileiros e demais cidadãos da AL acordarem com fome de conhecimento e sede por novos saberes, a universidade que sonhamos ganhará espaço”, complementou.

Reiterando os diversos problemas apontados por Mascarenhas, ele ainda lembrou das guerras, como a do Paraguai, e lutas por terra, desencadeadas pelo processo de colonização. “A meu ver, a figura do professor é o que move a paixão pelas áreas científicas e pela educação, bem como fomenta e instiga o aluno a buscar soluções para seu próprio país”, finalizou.