Os cristais são sólidos cujos átomos, moléculas ou íons que os constituem estão dispostos conforme um padrão tridimensional bem definido, que se repete no espaço e adquire uma estrutura geométrica específica. No imaginário popular, esses sólidos são vistos com um certo misticismo e admiração devido à sua beleza, brilho e aparente delicadeza, por trás da qual se esconde uma discreta força. Não por acaso, tais características atribuídas aos cristais também são comuns a Yvonne Mascarenhas, que optou por se dedicar, justamente, à cristalografia no final dos anos 50, quando esse campo de estudo era quase inexistente no Brasil.
A cristalografia é a ciência experimental cujo objeto de pesquisa é a disposição dos átomos em sólidos, o que inclui os cristais. A cristalografia moderna busca conhecer a estrutura dos materiais a nível atômico, além das relações entre essa estrutura e suas propriedades. Após completar a graduação em Química pela Universidade do Brasil (atual Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ) e em Física pelo Instituto Lafayette (atual Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ), a jovem Yvonne começou a se interessar por essa área tão pouco explorada. O interesse se transformou em paixão, que se materializou na tese de doutorado “Determinação de estruturas cristalinas por difração de raios-X”, defendida na Universidade de São Paulo (USP) em 1963.
Mas nem tudo foi tão simples assim. Yvonne Primerano nasceu em 21 de julho de 1931, na cidade de Pederneiras, no estado de São Paulo. Em fevereiro do ano seguinte, foram instituídos o voto e o direito das mulheres de se eleger para cargos no executivo e legislativo no Brasil. Isso não significou, no entanto, que elas tinham alcançado a igualdade em relação aos homens: entre 1937 e 1945, o Estado Novo instituiu o Decreto 3199, que proibia às mulheres a prática dos esportes considerados “incompatíveis” com as condições femininas – “luta de qualquer natureza, futebol de salão, futebol de praia, pólo, pólo aquático, halterofilismo e beisebol”. Somente em 1965 o Decreto foi regulamentado.
Dentro desse contexto, ao se analisar um documento de janeiro de 1955, que renovava o termo de concessão da bolsa de pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) a Yvonne, é possível notar cinco assinaturas – a da própria pesquisadora, a do diretor geral do CNPq, a do diretor científico do mesmo órgão, a de seu orientador e, por último, a de Sergio Mascarenhas, juntamente com os seguintes dizeres: “Autorizo minha esposa, Yvonne Primerano Mascarenhas, a aceitar a bolsa de pesquisa do CNPq e a firmar o presente processo”. “Imagina se eu não tivesse autorizado!”, brinca o ex-marido da cientista.
A história de conquistas de Yvonne foi concomitante às lutas vitoriosas de todas as mulheres. Diante das dificuldades financeiras, seu pai optou por mudar-se com a família para o Rio de Janeiro, então capital do Brasil, quando a futura pesquisadora tinha dez anos. Ela concluiu o curso clássico em 1948 e decidiu prestar o vestibular para química, estudando sozinha. Três anos antes, a Carta das Nações Unidas reconheceu a igualdade de direitos entre homens e mulheres e, três anos depois, a Organização Internacional do Trabalho aprovou a paridade de remuneração entre o trabalho masculino e feminino para a mesma função. Ainda nos dias de hoje, entretanto, tal igualdade não funciona muito bem na prática.
No terceiro ano da graduação, Yvonne começou a fazer também um curso aos sábados, que lhe concedeu uma bolsa de estudos – a única que teve durante todo o tempo na universidade. No valor de um salário mínimo, a bolsa foi uma vitória não apenas porque ela passou a atuar diretamente em Química, pois se tratava de uma especialização no Instituto Nacional de Óleos, Tintas e Vernizes, do Ministério da Agricultura, mas também porque passou a contribuir com o restrito orçamento familiar. “Nunca houve abundância nem luxo em casa”, conta. Em 1954, Yvonne se tornou bacharel em Química e, em 1955, completou o bacharelado em Física. Na época, ela era professora no colégio Maria José Imperial, quando foi convidada para dar aulas também na Faculdade Nacional de Filosofia.
Nesse mesmo período, Yvonne ia colecionando conquistas também na vida pessoal. Em junho de 1954, a primeira das três filhas de Francisco e Luiza deixava os pais ainda mais orgulhosos ao se casar com Sérgio Mascarenhas e começar a construir sua família. A lua de mel foi em Salvador e durou quase um mês – mas não foi como qualquer outra. O mentor da educação brasileira Anísio Teixeira convidou Sérgio para ministrar um curso de capacitação em ciência para professoras do ensino primário na capital baiana. O casal ficou hospedado em um mosteiro e elaborou apostilas com experimentos simples, que exploravam conceitos básicos. “Foi praticamente um mês de aula e de lua de mel, no mesmo mosteiro”, revela Yvonne Mascarenhas ao blog “Além das Facetas”.
Em 1956, Yvonne e Sérgio tiveram a atitude ousada de deixar a pulsante capital do Brasil e se mudar para São Carlos, no interior de São Paulo, onde trabalhariam no campus da USP, ainda em construção. Quando Yvonne chegou à pequena cidade, indagou: “O que eu vim fazer aqui?”. A resposta viria em breve. Juntos, os cientistas ajudaram a fundar o Instituto de Física de São Carlos e, a partir da convivência com os docentes e alunos, que na época não eram muitos, o grupo foi tornado-se uma verdadeira família. Ávido por trabalho, o casal decidiu montar uma oficina mecânica e uma de eletrônica, na expectativa de criar experimentos novos e expandir as possibilidades de aula prática. Hoje, a exemplar infraestrutura do Instituto de Física de São Carlos deriva da decisão dos Mascarenhas de procurar fazer pesquisas mais experimentais.
Após um contato com o professor R. Schmoluchowski no Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA), três anos depois da mudança para São Carlos, o casal planejou um estágio no Carnegie Institute of Technology (CarnegieTech), nos Estados Unidos. Lá, Yvonne aprofundou seus estudos na área da cristalografia e foi delineando sua vida profissional. Ela se matriculou em alguns cursos e encontrou os amigos e também professores da USP Amélia e Ernst Hamburger. Eles sugeriram que ela entrasse em contato com o professor George Jeffrey, da Universidade de Pittsburgh, que liderava um dos melhores grupos do país que atuavam com cristalografia. Assim fez a cientista, que começou a trabalhar no laboratório do norte-americano e adquiriu uma enorme experiência na área. Yvonne voltaria para os Estados Unidos em 1972, para concluir seu pós-doutorado na Universidade de Harvard.
Quando voltou ao Brasil, nos anos 60, Yvonne trouxe com ela um enorme aprendizado, essencial para estruturar de uma forma mais definida o Grupo de Cristalografia de São Carlos. Ela foi convidada para ajudar na regularização da situação do Brasil – que estava com dívidas e informações desatualizadas – como membro da União Internacional de Cristalografia. Esse foi o primeiro passo para a posterior criação da Associação Brasileira de Cristalografia (ABCr). Yvonne fez um levantamento de todos os profissionais que trabalhavam nessa área e elaborou uma carta circular, comunicando a intenção de fundar uma sociedade que criasse um canal de comunicação entre os cristalógrafos brasileiros. Após reuniões e com recursos próprios e a colaboração de todos, a Sociedade Brasileira de Cristalografia (atual ABCr) foi fundada em outubro de 1971.
Primeira reunião da ABCr, em 1971
Desde então, inúmeras vitórias foram sendo somadas à história de uma das cientistas mais importantes do Brasil. Em 1998, ela foi admitida na Ordem Nacional do Mérito Científico na Classe da Grã-Cruz, pelo presidente da República. Em 1999, ela foi eleita Mulher do Ano pela União Cívica Feminina de São Carlos e, em 2000, tornou-se Membro Titular da Academia Brasileira de Ciências. No ano seguinte, aposentou-se pela USP – mas somente no papel. Ela não apenas continuou a dar aulas como ainda passou a se dedicar a uma nova área: a educação científica.
“Queria ter metade do entusiasmo que eu percebi na Yvonne quando a conheci”, comenta César Ades, diretor do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP de São Carlos, fundado por Sérgio Mascarenhas. “Sempre fiquei impressionado não apenas pela qualidade de seus projetos, mas pela filosofia que estava subjacente, de colocar o conhecimento à disposição, não o fechando em ambientes seletos, mas sim transformando-o em mensagens.”
Durante a homenagem feita aos 80 anos de Yvonne no campus da USP de São Carlos, em 2011, Ades lembrou de um episódio recente em que estavam presentes cientistas ingleses e israelenses. “Lá estava ela, com a sua presença luminosa, quando tomou a palavra e fez uma defesa da participação da mulher na academia. Tentei lembrá-la sobre já termos uma presidente mulher, mas ela disse que muita coisa ainda precisa acontecer para que a mulher tenha o papel que merece. Basta o seu exemplo e a sua presença para percebermos o quanto é relevante e importante a presença feminina na academia.”
O presidente do CNPq, Glaucius Oliva, lembra que Yvonne se dedicou não apenas à família, mas também ao Instituto de Física, a São Carlos, às pessoas mais simples e às mais qualificadas que por ali já passaram. “Todos nós somos seus filhos.” Paulo Mascarenhas (seu filho propriamente dito) declara que a mãe é um exemplo de vida ética, seriedade, competência, generosidade e, “principalmente, muita coragem para tocar o dia a dia sempre pensando não apenas em si, mas no melhor a ser feito”. A irmã da cientista, Doraci, concorda: “o suporte da nossa família sempre foi a Yvonne. Ela dá muito mais do que recebe”.
De gestos contidos e presença discreta, mas de uma experiência que, paradoxalmente, chama atenção em qualquer lugar, Yvonne é uma desbravadora, que marca a história da ciência brasileira. As dificuldades pelas quais passou – desde o fato de ser mulher em um ambiente masculino e em uma época em que era considerada inferior, até os obstáculos de se fazer pesquisa no Brasil – enaltecem ainda mais o seu trabalho. Sua beleza, brilho, delicadeza e força fazem de Yvonne um diamante – o mais charmoso dos cristais. E, por isso, ela é uma mulher amada pelas mulheres, pelos homens e pela ciência.