Embora haja enorme demanda por pessoal de nível técnico, tecnólogos e gestores nas prefeituras de todo o País, há poucos profissionais especializados em recursos hídricos. E mais: os que existem não têm formação voltada para ecossistemas, de acordo com os 17 especialistas na área participantes do workshop organizado em São Carlos pela ABC.
O ex-presidente da Embrapa Silvio Crestana, assina embaixo. “No Brasil não se trabalha o sistema, não predomina uma visão holística da questão dos recursos hídricos. Ou se trabalha em uma escala de satélite ou em uma escala microscópica, e o que ocorre é que o aluno sai formado sem estar preparado para integrá-las. Esse problema tem que ser enfrentado, pois é preciso chegar à escala do agricultor”.
Currículos defasados
O pesquisador Fernando Spilki (na foto ao lado), da Universidade Feevale, em Novo Hamburgo, no Rio Grande do Sul, reafirmou a importância da visão multidisciplinar. “É preciso que o engenheiro químico entenda os indicadores e o biólogo entenda a físico-química da água, que em muitos locais tem aparência clara e límpida, mas está contaminada com vírus e bactérias.”
Sobre os currículos dos cursos existentes nas universidades, o professor do Instituto de Geociências da USP, Ricardo Hirata, informou que hidrogeologia e hidroquímica praticamente não são estudadas. “Esses cursos novos de Ciências Ambientais não têm um conteúdo programático definido, nem um professor formado de maneira diferenciada. Na prática, são colchas de retalhos. É preciso maior sinergia”. Hirata aponta que a demanda do mercado tem que ser considerada. “A ANA [Agência Nacional de Águas] precisa definir áreas estratégicas em grandes fóruns de discussão.”
Formação não contempla necessidades do mercado
Para o Acadêmico Luiz Drude de Lacerda, biofísico da Universidade Federal do Ceará (UFC), a compartimentação generalizada da formação na área de recursos hídricos se deve ao fato de não existir curso superior transversal no país. “A dimensão humana, por exemplo, não é incluída nos currículos de Biologia, Química etc. O profissional tem que ser formado outra vez para poder atuar em um Comitê de Bacias”. Os Comitês de Bacias Hidrográficas são instâncias decisórias estabelecidas pelos estados para conduzir o gerenciamento das bacias hidrográficas. “São 15 mil profissionais operando nesses Comitês com formação pouco abrangente”, reforçou Drude.
Este problema da formação de pessoal já ocorre há mais ou menos dez anos, de acordo com a professora do Instituto de Ciências Biológicas (ICB) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Sandra Feliciano Azevedo. “Não se vê um progresso. Os meninos da área biológica, por exemplo, têm ojeriza a cálculo. Continuamos perpetuando a dicotomização da ciência”.
Para a geóloga Patrícia Seppe, os novos paradigmas, incluindo essa visão integrada do sistema hidrológico, aparecem no discurso dos funcionários da Secretaria do Verde e do Meio Ambiente da Prefeitura de São Paulo, mas não estão incorporados na prática do dia a dia. Ela relata que as consultorias contratadas não dão resposta em nível de plano de bacias e gestão de drenagem. “Precisamos de soluções rápidas e baratas”, destacou.
A área de recursos hídricos no estado de São Paulo, segundo o Acadêmico Luiz Martinelli, professor do Centro de Energia Nuclear na Agricultura da Universidade de São Paulo (CENA-USP), é gerida basicamente por engenheiros civis, que são hábeis em determinados aspectos, mas que não têm formação ecológica. “Os rios são olhados como aquedutos romanos: levam água do ponto A para o ponto B. Não se olha o rio como um sistema, pensando, por exemplo, qual a interação entre materiais orgânicos e metais pesados. Nossa atuação com relação às propriedades bióticas de conservação de ecossistemas é nula.”
Os doutores brasileiros, na realidade, estão sendo formados na especialidade do orientador. Na avaliação do limnologista Carlos Bicudo, do Instituto de Botânica do Jardim Botânico de São Paulo, os especialistas formados são de excelente nível, “mas há muito pouca criatividade nas linhas de formação, que precisam ser incentivadas pela demanda do país.”
Na visão de Sandra Azevedo, no entanto, a evolução socioeconômica do país não pode esperar a formação de mestres e doutores. “Não adianta termos carta de intenções, precisamos de ações políticas. Temos que entrar na graduação, em Engenharia de Saneamento, por exemplo. Temos que incentivar mestrados profissionais para formar esses especialistas, de forma que eles sejam capazes de atender às prefeituras e Comitês de Bacias.”
Com experiência na área de gestão de CT&I e trabalhando atualmente no Agroparque Tecnológico de Barretos, a linguista e ex-diretora do CNPq Marisa Cassim concorda. “O mercado tem que ajudar a definir o perfil do profissional que ele precisa. Querer que a academia forme, sozinha, profissionais para fora da academia não faz sentido.”
Diversidades regionais
A Amazônia, a região Centro-Oeste e a região Nordeste têm tido 30% dos recursos reservados em todos os editais de agências federais nos últimos anos. Mas, na visão do grupo, essas regiões não estão conseguindo aproveitar integralmente a oportunidade por falta de recursos humanos. Segundo a tecnóloga em Engenharia Florestal do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) Hillândia Brandão da Cunha, a Amazônia não tem professores para formar outros especialistas. “Podemos nos associar a grupos já estabelecidos, fazer um intercâmbio para formar esse pessoal. Mas os governos locais têm que se comprometer a empregar os formados.”
De acordo com Hillândia, a região amazônica é carente de pessoal em todos os níveis. “Falta pessoal de nível técnico, faltam especialistas, faltam equipamentos e laboratórios, faltam políticas públicas. Temos grande demanda para gerir recursos e nenhum Comitê de Bacias na região”.
Mesmo nas grandes metrópoles do estado de São Paulo, falta pessoal treinado para lidar com sustentabilidade de água – analistas de sistemas, projetistas, pessoal de monitoração, operadores de estação de tratamento e outros. Segundo Ivanildo Hespanhol, da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP), a situação atual no estado é insustentável. “São Paulo está importando água de fora e gerando esgoto não tratado”.
Hespanhol apontou como um dos principais problemas a falta de interação dos setores de recursos hídricos com os gestores da saúde pública. “Falta qualidade de água, que é um conceito interpretado de formas diversas. Falta proteção dos mananciais de água. Faltam técnicos especializados em promover a implementação de laboratórios de referência. Faltam programas educacionais para crianças e jovens.”
Limitações existentes
O engenheiro químico Renato Ciminelli, gerente executivo do Pólo de Excelência Mineral e Metalúrgico de Minas Gerais, mencionou que o consumo de água nos minerodutos é enorme. “Quando induzimos a criação de um consórcio minero-metalúrgico, tivemos que pedir para incluir a questão social e ambiental.”
Marcos Folegatti, professor e pesquisador da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da USP, em Piracicaba, observou que essa visão holística que considera a bacia como unidade de gestão ainda não ocorre na área rural. “O ciclo hidrológico não é utilizado de maneira inteligente para o proveito econômico, social e ambiental.”
Para a professora do Departamento de Ecologia e Biologia Evolutiva da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) Odete Rocha, a conclusão é que esse profissional com o perfil adequado para as demandas do país não existe hoje. “No Chile, por exemplo, existe uma Universidade dos Lagos. No Brasil não há ainda nada semelhante, temos profissionais especializados em gavetas. Para envolver essa gama necessária de conhecimentos, é preciso que haja a composição de equipes multidisciplinares. E é preciso que haja oferta de emprego para que haja formação de profissionais.”
A diretora do Instituto Internacional de Ecologia (IIE), Takako Matsumura Tundisi, concordou. “Nem cursos de pós-graduação dão formação com essa profundidade de conhecimento multidisciplinar. Precisamos criar cursos com esse perfil e tem que haver um centro de referência em recursos hídricos abrangendo águas superficiais e subterrâneas.”
Até o conceito de equipe multidisciplinar precisa ser ajustado, na opinião de Martinelli, que além de professor do Centro Nacional de Energia Nuclear na Agricultura (CENA) da USP, é membro do Comitê de Bacias de Piracicaba. “Não adianta colocar profissionais de áreas diferentes na mesma sala se não houver um projeto de integração. Não há um curso específico de graduação para gestores e ecólogos. Estes só existem em nível de pós-graduação, mesmo assim isolados e não concentrados numa escola de formação de recursos hídricos, como deveria ser, mesmo que virtual.”
Para mudar, é preciso conhecer a realidade
Sintetizando a discussão, o coordenador do workshop José Tundisi elencou as unanimidades. “Os novos cursos precisam ter visão sistêmica, que além dos aspectos geofísicos envolva aspectos sociais e econômicos. Não queremos formar generalistas e sim profissionais com uma nova forma de ver o processo todo da bacia, especialistas com visão de usos competitivos da água.”
O Acadêmico destacou que a formação de recursos humanos deve se dar em todos os níveis. “Não precisamos apenas de pós-graduandos, mas também de gestores de recursos hídricos, tecnólogos e técnicos com visão sistêmica. Treinamos técnicos para que saibam usar o computador, o GPS, coletar amostras, mas eles têm que saber por quê, para quê. Precisamos formar profissionais flexíveis, com capacidade de olhar um sistema por vários ângulos, que saibam ver as diferentes ênfases.”
Outro ponto de acordo apontado por Tundisi é a relação necessária entre a academia e a iniciativa privada. “Ainda há um ranço na Academia de que essa interação prostitui a ciência. Há necessidade premente de interação entre o setor público e o privado, para que se estabeleça uma relação entre oferta e demanda. Os recursos hídricos trazem em si oportunidades de negócios”.