Em fevereiro deste ano o químico gaúcho Jairton Dupont, 52 anos, recebeu mais um reconhecimento público pela importância e consistência do seu trabalho. Ele foi escolhido como um dos 100 químicos mais influentes da década pela agência internacional Thomson Reuters. Único brasileiro da lista, onde figura em 83º lugar, Dupont diz se sentir muito satisfeito, mas divide os créditos. “Qualquer um de nós quando tem o seu trabalho reconhecido se sente recompensado, mas eu gosto de pensar que é um reconhecimento do trabalho de um grupo, uma ilha de excelência de que tenho o privilégio de estar à frente”, diz o professor do Departamento de Química Orgânica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), onde coordena um grupo de pesquisa dedicado a estudos com líquidos iônicos orgânicos para aplicação principalmente no refino de petróleo na indústria petroquímica. A distinção se soma a muitos outros prêmios já recebidos pelo pesquisador, como o Humboldt Young Research Award, concedido pelo Ministério da Educação, Ciência e Tecnologia da Alemanha em 2005, honraria que ele descreve como uma das mais importantes. Em 2007 ganhou o prêmio Scopus da Elsevier-Capes e em 2008 a medalha do Journal of the Brazilian Chemical Society, o Prêmio Finep Inventor-Inovador e o World Intellectual Property Organization Award.
A história de vida de Dupont é bastante parecida com a trajetória de muitos brasileiros do interior que se mudaram para a capital nas décadas de 1960 e 1970. Nascido em um pequeno vilarejo de imigrantes suíços formado no final do século XIX, chamado Desvio Blauth e hoje pertencente à cidade de Farroupilha, mudou-se aos 6 anos com a família para Canoas, cidade-satélite de Porto Alegre, já que a irmã mais velha havia ingressado na universidade. “A obsessão dos meus pais era que os filhos estudassem”, relata. “E esse foi um dos maiores legados que eles me deixaram.” As dificuldades materiais eram muitas, mas ao relembrar a infância ele parece viajar no tempo e a descreve como maravilhosa. “As lembranças são de uma infância com a maior liberdade possível, em que jogava taco, bola de gude, tomava banho de rio.” Começou a estudar à noite aos 13 anos para poder trabalhar durante o dia. Aos 14 anos teve o seu primeiro registro em carteira como balconista de uma loja de ferragens. Decidiu que seria professor de matemática pela facilidade que tinha em aprender a matéria e ensiná-la aos colegas. Fez vestibular na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) para licenciaturas curtas em ciências, curso de dois anos e meio de duração, que permitia aos alunos lecionar matemática, física, química e biologia.
No final do primeiro semestre foi convidado por uma das professoras de pedagogia a dar aulas em colégio particular de Porto Alegre. Pouco tempo depois, começou a lecionar também em um colégio estadual. Enquanto cursava ciências, passou a achar a matemática muito monótona e lógica. “A química era um fascínio, porque não tinha quase nada de equacionável, era tudo empírico e havia um mundo a descobrir”, lembra. Logo depois que decidiu fazer química começou a cursar a licenciatura plena, também na PUC. Uma das outras habilidades que sempre teve, ele conta, é o aprendizado de idiomas. Como falava com certa facilidade o francês, decidiu ao término do curso de graduação em 1982 ir para a França fazer uma especialização, mesmo sem ter bolsa. “Na época, entre alguns círculos estudantis de esquerda, aprender inglês era se render ao imperialismo norte-americano”, diz, ressaltando que hoje ri quando se lembra disso. “Ao chegar à França, a primeira coisa que me fizeram aprender foi o inglês, porque é a língua da ciência.”
Fez o curso de especialização e emendou com o doutorado, ambos na Universidade Louis Pasteur de Strasbourg. Ao terminar, recebeu um convite para fazer pós-doutoramento na Universidade de Oxford, na Inglaterra, período que deveria durar um ano e foi esticado para três, porque conheceu a sua mulher, a colombiana Martha, com quem teve depois de 23 anos de convivência a filha Isabel Cristina, hoje com 2 anos e meio. “Fiquei esperando que ela terminasse o doutorado para que pudéssemos vir ao Brasil, que Martha ainda não conhecia”, diz. A volta se deu em 1990, com uma bolsa de recém-doutor e, desde 1992, quando prestou concurso para professor adjunto, está na UFRGS. A partir dessa época foi criado na universidade o grupo de pesquisa em catálise, que hoje é referência mundial. “Em 1992, nós éramos o terceiro ou quarto grupo formado no mundo, não tinha mais ninguém trabalhando nessa área.” A descoberta do impacto das pesquisas produzidas só veio muito depois, quando os pesquisadores começaram a perceber que as citações aos trabalhos publicados havia aumentado consideravelmente e pelos convites recebidos de todas as partes do mundo para fazer conferências. Para os jovens que estão começando, Dupont alerta que a ciência tem seus preconceitos. “Sabemos muito bem disso porque tivemos muita dificuldade para publicar os primeiros artigos científicos do grupo”, relata. Eles foram publicados em periódicos científicos de terceira categoria. Agora grande parte desses artigos encontra-se entre os mais citados nas publicações internacionais. Por isso ele faz uma recomendação: “Mesmo quando se recebe um não, é preciso persistir”.
O interesse pelos compostos iônicos, um assunto praticamente desconhecido naqueles idos da década de 1990, envolve um dos colegas e grande amigo pessoal de Dupont, o professor Roberto Fernando de Souza, diretor do Instituto de Química da UFRGS. O pesquisador diz que ainda se lembra do dia em que, no corredor, ele perguntou: “Jairton, tu viste o artigo do Yves Chauvin, em que a dimerização de olefinas [hidrocarboneto] é feita com sal fundido?”, relata Dupont, que respondeu: “Você está louco?”. O uso de compostos iônicos orgânicos para acelerar as reações químicas era novidade na época. O francês, autor do artigo, ganhou o Prêmio Nobel de Química em 2005, mas por outra linha de pesquisa. O espanto de Dupont deu lugar à descoberta de que o assunto estava começando a entrar na pauta. Tanto que logo depois desse episódio os pesquisadores gaúchos foram procurados pela Petrobras com a proposta de montar um grupo de trabalho para estudar o tema que interessava à empresa. Esses sais, que são naturalmente líquidos à temperatura ambiente, não evaporam e são ótimos condutores de eletricidade. Além do refino de petróleo, eles podem ser usados na produção de substâncias de interesse farmacêutico ou como lubrificantes de robôs e equipamentos enviados para o espaço. Alunos da UFRGS foram enviados para aprender com o grupo do professor Chauvin na França. “A primeira patente brasileira de uso de líquido iônico foi depositada pelo professor Roberto quando estava na França em um ano sabático”, conta Dupont.
A aplicação dos líquidos iônicos em catálise abriu um novo leque de oportunidades para o grupo de pesquisa, que conta atualmente com 25 professores. O grupo tem três patentes concedidas e 10 depositadas, a maioria em parceria com a Petrobras. As patentes são ligadas à catálise, mas também para novas aplicações vislumbradas para líquidos iônicos, como geração de hidrogênio e energias alternativas. “Aprendemos a duras penas que é melhor primeiro patentear e depois publicar. Existem várias patentes no mundo baseadas em desenvolvimentos feitos pelo nosso grupo”, diz o pesquisador. “Isso só foi possível porque esse grupo, ao qual pertenço, decidiu que era possível fazer ciência apesar de todas as dificuldades que se tinha na época.” Dupont elogia os cientistas que saíram do país e fizeram sucesso lá fora, mas diz que valoriza muito o cientista brasileiro que fez carreira no Brasil. “Os que permaneceram criaram esse sistema de ciência que tem muito mais valia para mim e para a sociedade do que os outros que estão fora.”
A escolha de Dupont pela química se revela também no seu prazer em cozinhar. Para ele, a cozinha é um laboratório. “Eu não conheço nenhum bom químico que não seja um bom cozinheiro.” O segredo para se sair bem é fazer com prazer. “Eu me sinto dono de mim mesmo quando estou fazendo um prato e me sinto muito bem se os outros gostarem do que eu fiz”, atesta o gaúcho, que não esconde a imensa alegria de ter sido pai quase aos 50 anos. Dupont diz que ser cientista é maravilhoso para quem gosta de viajar e conhecer diferentes culturas. “Nos meus cinco anos de França e três de Inglaterra, aprendi todo o ritual de como se prepara um prato, como se serve e como se come.”
Na universidade, Dupont se divide entre a sua sala de dimensões acanhadas e os laboratórios onde orienta os alunos, em sua maioria bastante jovens, com um vaivém constante. O professor gosta de estar cercado deles e não se recusa a viajar para atender pedidos de estudantes interessados em aprender mais sobre a linha de pesquisa que lidera. “É difícil em um ambiente hostil produzir algo novo, por isso ele tem que ser o mais diverso, onde o embate e as ideias fluam”, diz. Desde que foi anunciado como um dos 100 maiores químicos do mundo, em uma lista que tem 70 dos Estados Unidos, 7 da Alemanha e 4 do Reino Unido, o professor já deu muitas entrevistas para diversos veículos de comunicação. O que sobressai nelas é a sua postura extremamente politizada, em que ressalta o fato de ser o único ibero-americano – e também o único pesquisador de países emergentes como China e Rússia na lista. Para figurar na relação, os escolhidos deveriam ter publicado pelo menos 25 artigos em uma década e recebido, no mínimo, citações em 50 diferentes publicações. Todas essas exigências foram superadas com folga por Dupont. Entre 2000 e 2010, ele publicou 120 artigos sobre química e obteve 6.964 citações, o que resultou em mais de 58 citações por artigo.
Para o pesquisador, o fato de a esmagadora maioria dos figurantes da lista ser dos Estados Unidos resulta de o país ter criado uma ilha de excelência em pesquisa. “As instituições brasileiras, principalmente as universidades, foram pensadas e criadas com outro papel, ao contrário das instituições norte-americanas onde trabalham esses pesquisadores”, diz Dupont. “No Brasil, ainda se acredita que a formação possa se dar na sala de aula, com quadro-negro, giz e livro. É uma formação livresca, em que a pesquisa passa ao largo”, observa. Ele ressalta que as instituições brasileiras não estão preparadas para atender a demanda da sociedade para ciência e tecnologia. “O marco legal a que as nossas universidades estão submetidas é completamente inadequado, porque somos tratados como uma simples repartição pública.” Dupont diz que esse modelo brasileiro não tem como responder à ciência, que necessita de liberdade, agilidade e facilidade para adquirir dados, reagentes, equipamentos e até contratar pessoas.
“Se não houver uma mudança no marco legal onde se realiza mais de 90% da ciência, tecnologia e inovação, não vamos conseguir fazer frente aos demais paí-
ses que compõem o BRIC”, diz. A sigla BRIC refere-se ao Brasil, Rússia, Índia e China, que se destacaram no cenário mundial pelo rápido crescimento de suas economias em desenvolvimento. “Para isso também é preciso que as universidades com programas de pós-graduação de excelência assumam o seu papel.” Dupont alega que essas universidades, em boa parte, em vez de fornecer os doutores de que o país necessita nesse momento, preferem criar mais cursos de graduação ou até cursos tecnólogos. É fundamental, na sua avaliação, que nesse momento de avanço na economia o Brasil coloque mais densidade tecnológica e de conhecimento nos produtos que exporta. “A não ser que o Brasil queira continuar a ser um eterno exportador de commodities com muito pouco valor agregado aos seus produtos”, diz. Para isso o país precisa formar mais mestres e doutores.
A título de exemplo, ele cita que o sistema brasileiro federal não tem mais do que 90 mil doutores, segundo levantamento do Ministério da Ciência e Tecnologia, dos quais 6 mil são químicos. “Só a cidade de Boston, nos Estados Unidos, tem esse número de químicos”, compara. Dupont diz que o país tem um problema de escala. “Para atacar esse problema temos que investir desde o ensino fundamental até o mais elevado, mas é preciso que as instituições assumam essa responsabilidade”, afirma. “Sem doutores, não vamos conseguir universalizar um ensino de qualidade.” Para o pesquisador essa é uma oportunidade única, que não pode ser desperdiçada. “O Brasil conseguiu montar algo exemplar no mundo nos últimos 50, 60 anos, que foi a criação da pós-graduação brasileira. Temos alguns programas de pós de excelência no Brasil capazes de iniciar o processo para responder a essa demanda de gente qualificada do mais alto nível.”