Para muitas pessoas ao redor do mundo, o dia só começa de verdade depois de uma boa xícara de café. Substância psicoativa mais consumida no planeta, a cafeína foi demonizada por décadas. Estudos a apontavam como fator para o desenvolvimento de várias doenças, como hipertensão e úlceras, além de provocar abortos, prejudicar o feto e causar dependência. Agora, no entanto, novas pesquisas buscam mostrar seus efeitos benéficos para a saúde.
“De todos os estudos publicados até agora sobre a cafeína, não se pode extrair de forma incontestável dados que comprovem que essa substância apresenta perigo ao organismo”, afirma o médico nutrólogo Edson Credidio, especialista em gestão da qualidade e segurança dos alimentos pela Unicamp.
Também presente em chás, mate, chocolates e refrigerantes, entre outros, a cafeína – se consumida com moderação – ajudaria a prevenir a perda de memória causada pelo mal de Alzheimer e o envelhecimento e reduziria o risco de desenvolver diabetes do tipo 2. A substância também poderia deter ou mesmo prevenir a doença de Parkinson e aliviar a asma e dores de cabeça, entre outros usos. O interesse em torno de suas propriedades cresceu tanto nos últimos anos que, no mês passado, foi lançado um periódico científico internacional dedicado exclusivamente a ela, o “Journal of Caffeine Research”.
Uma das pesquisadoras mais destacadas neste campo é a brasileira e Acadêmica Lisiane Porciúncula, neurocientista do Departamento de Bioquímica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Segundo ela, experimentos com animais comprovaram que doses entre 300 e 400 miligramas diárias de cafeína – o equivalente a três a quatro xícaras de café por dia – ajudam a proteger o cérebro da demência.
“Vimos em cobaias que a administração de cafeína ao longo da vida dos animais, até eles atingirem a meia idade, previne o declínio da memória de reconhecimento, que é a que permite reconhecer uma novidade em um ambiente que já é familiar”, conta. “Essa memória apresenta um comprometimento com a idade nos animais e é muito semelhante à memória que é perdida na doença de Alzheimer em pessoas.”
Atualmente, Lisiane testa se a ingestão de cafeína apenas a partir da meia idade também ajudaria na prevenção: “Até o presente momento, verificamos que os animais que já atingiram a meia idade e que consumiram cafeína durante 30 dias parecem apresentar uma melhora no desempenho da tarefa de reconhecimento, mas os dados ainda são bastante preliminares.”
Melhora nas aulas de matemática
O psiquiatra Diogo Rizzato Lara, professor da PUC-RS e outro pesquisador sobre a cafeína, explica que uma das principais dificuldades para pesquisar os efeitos da substância no corpo humano está justamente no fato de ela ser largamente utilizada em quase todas as culturas do mundo. Desta forma, é difícil isolá-la de outros componentes da alimentação e hábitos das populações, o que a faz alvo, principalmente, de observações.
“Há muitos fatores desconhecidos, e o que não se sabe não se pode pesquisar”, diz. “Também há perfis muito diferentes entre as pessoas que consomem café, chá, refrigerantes e chocolates. A associação do efeito pode ser com a fonte de cafeína em si e não diretamente com a substância.”
Lisiane aponta como exemplo disso o caso de uma escola em São Paulo, onde as crianças passaram a tomar café com leite no fim do recreio, antes de voltarem para aulas de matemática. Segundo ela, os professores perceberam que os alunos ficaram mais atentos e apresentaram um melhor desempenho nas tarefas propostas.
“Não conheço um país que não consuma café. Pode ser em maior ou menor quantidade ou concentração, mas a cafeína é um componente que está na alimentação de pessoas em todo mundo”, avalia a neurocientista. “Um estudo populacional com uma substância que é parte da dieta é muito difícil de ser realizado, pois é preciso controlar numerosas variáveis.”
Para Lisiane, os cientistas não devem se intimidar diante dessas dificuldades, principalmente no Brasil, grande produtor e consumidor de café que também passa por mudanças no seu perfil populacional.
“Nossa pirâmide etária está na forma de barril. Temos uma população que desde a década de 50 vem envelhecendo e agora se assemelha com alguns países da Europa, que se preocupam muito com as doenças degenerativas decorrentes da idade. Agora nós temos que nos preocupar também”, avalia. “Nossa longevidade é maior, então as doenças decorrentes da idade vão começar a aparecer mais. No caso de Alzheimer, ela tem um custo social elevado, pois o paciente fica completamente dependente dos familiares. Você é aquilo que você se lembra.”
Mesmo diante dos obstáculos, continuam a surgir levantamentos que apontam possíveis benefícios no consumo de cafeína. Pesquisa da Escola de Medicina de Harvard, por exemplo, revelou que tomar duas xícaras de café por dia levou a uma redução em 42% do risco de desenvolver diabetes do tipo 2, queda equivalente à observada em pessoas com uma dieta rica em fibras de cereais integrais. Lara, no entanto, destaca que o efeito benéfico só vale para pessoas saudáveis.
Efeito calmante nas crianças
“Se o café vai fazer bem ou mal depende da natureza da pessoa”, alerta. No caso do diabetes do tipo 2, há uma disputa e alguns estudos apontam que a cafeína pode piorar o controle da doença em pessoas nas quais ela já está instalada. Ela também pode ser prejudicial para pessoas com um temperamento mais instável, podendo desencadear crises de síndrome do pânico. Por outro lado, ela se mostrou eficiente como antidepressivo, ajudando a estimular a atividade de pacientes com um perfil de comportamento mais negativo e apático.
Dessa forma, ainda restam muitas dúvidas quanto às propriedades da cafeína e sua ação sobre os seres humanos. Os pesquisadores ainda não sabem, por exemplo, porque seu consumo beneficia mais as mulheres na prevenção do mal de Alzheimer, enquanto os homens ganham maior proteção contra a doença de Parkinson. Além disso, seus efeitos são diferentes em crianças, nas quais age como calmante, e adultos, para os quais é estimulante. Em seu laboratório – que montou com ajuda de uma bolsa de US$20 mil que recebeu pelo prêmio “Mulheres na Ciência”, patrocinado pela Unesco, Academia Brasileira de Ciências e a fabricante de cosméticos LOreal, em 2006 – Lisiane também se debruça sobre estas e outras questões, como a restrição de seu uso por mulheres grávidas. Segundo ela, a recomendação tem como base pesquisas realizadas entre as décadas de 60 e 80 que verificaram uma maior incidência de abortos e nascimento de bebês com baixo peso entre as mulheres que tomavam muito café, mas que não levaram em conta o tabagismo como um fator.
“Esses estudos não levavam em consideração que essas mulheres também fumavam e hoje se sabe que o fumo leva a todas essas alterações”, lembra. “Já existem outros estudos mais controlados em que não se encontra uma relação do consumo de café em quantidades seguras, de até três xícaras por dia, com maiores riscos de aborto ou dos bebês nascerem com baixo peso. Minha proposta é estabelecer uma dose que seja segura e não cause alterações em proteínas importantes para o funcionamento do sistema nervoso central dos fetos.”
Diante disso, resta uma última recomendação de Credidio: “Como tudo na vida, o uso de alimentos e complementos alimentares deve ser feito com parcimônia e, de preferência, inserido em uma dieta balanceada. Observamos que nas pesquisas realizadas o café tem considerável papel terapêutico, podendo auxiliar em diversas patologias e fazer parte de uma alimentação saudável.”