O Acadêmico e historiador José Murilo de Carvalho publicou o seguinte artigo de opinião no jornal O Globo, em 18/2:

“Noticia-se que as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) estão implantando nas comunidades ocupadas um serviço de mediação de conflitos a cargo de policiais treinados pelo Tribunal de Justiça. As UPPs têm-se revelado uma política promissora na área de segurança pública, política essa, aliás, pregada há quase 20 anos pelo Viva Rio. O novo serviço é um importante complemento à ação policial e social já em andamento. É importante porque se trata nada menos do que de levar o serviço público de arbitramento de conflitos a camadas da população sem acesso ao Judiciário.

Nosso sistema policial-judicial, todos sabem, é uma calamidade em termos da eficácia e do alcance de sua atuação. Não pune a maior parte dos crimes e não garante os direitos da maioria da população, embora construa magníficos palácios. A garantia dos direitos civis dos cidadãos, de que a mediação de conflitos é parte importante, é o pé quebrado de nossa capenga cidadania. A mediação é um instrumento barato e eficiente de resolver inúmeros pequenos conflitos que infernizam a vida de milhões de cidadãos sem acesso ao Ministério Público, à Defensoria Pública e aos caros serviços advocatícios. Não por acaso, tal mediação era e é exercida pelos traficantes nas comunidades por eles dominadas, e sempre foi parte da atuação informal da Polícia Militar. O novo serviço a oficializa e lhe traz a garantia da supervisão do Judiciário.

Promover a conciliação era uma das atribuições dos juízes de paz que existiram no Brasil entre 1828 a 1889. Copiados da tradição anglo-saxônica, nossos juízes de paz eram leigos e eleitos. Representavam o sonho dos liberais da época de democratizar a Justiça em seus operadores e em seu alcance. O que pouca gente sabe é que a Constituição de 1988 trouxe de volta, em seu art. 98, II, a figura d a Justiça de Paz , composta de cidadãos comuns eleitos para mandatos de quatro anos. Entre suas atribuições está exercer atribuições conciliatórias, sem caráter jurisdicional.

Que eu saiba, nunca houve qualquer tentativa de regulamentar e dar vigência a esse dispositivo constitucional. Terá sido por receio de entregar a justiça a juízes leigos e eleitos, um medo que não tiveram os legisladores de 1828? Terá sido por causa da velha desconfiança na capacidade do povo de se autojulgar, como por tanto tempo se desconfiou dele para se autogovernar?

Liberadas as comunidades do jugo dos juízes da guerra, é excelente o momento para se introduzirem os juízes da paz, formalizando e expandindo a mediação de conflitos pela aplicação do negligenciado dispositivo constitucional. Seriam beneficiados os cidadãos das comunidades pacificadas e do Brasil inteiro. Ganharia a democracia brasileira, que claudica na incapacidade de garantir os direitos civis de seus cidadãos. Passados 183 anos da primeira criação dos juízes de paz, não se deve temer que o juiz de paz da cidade venha a ser ridicularizado com o foi o juiz de paz da roça na famosa peça de Martins Pena.”