O planeta Terra é bem provido de água, mas esta é distribuída de forma desigual e se apresenta em diversas formas: na superfície, no subterrâneo, nos oceanos e na atmosfera. Os problemas de acesso à água fresca geralmente estão associados a problemas de distribuição e contaminação, como também ao mau uso desse recurso natural.

No decorrer do último século, o consumo de água dobrou em relação à população. Estima-se que 884 milhões de pessoas – o correspondente a 14% da população mundial – não tem acesso à água potável tratada e dois milhões e meio de pessoas – 38% da população do mundo – não têm sistema de água e esgoto adequado. Até 2030, dois terços da população mundial vão estar vivendo em cidades, o que causará um dramático aumento na demanda por água nas regiões urbanas.

Preocupação para os países mais pobres

Esses dados são da Unicef (2008) e da Unesco (2006), entidades que junto com a Organização Mundial de Saúde (OMS) avaliam que o consumo de água individual diário varia de 171 litros na América do Sul, passando por 200 a 300 litros na maioria dos países europeus e chegando a 575 litros nos EUA.

No entanto, em torno de dois milhões de pessoas vivem em favelas e assentamentos, sofrendo com a falta de estrutura sanitária e de acesso à água limpa. Nos países em desenvolvimento sem sistema de água encanada, o consumo é extremamente menor, especialmente dadas as grandes distâncias a serem percorridas para se obter e transportar a água.

Os padrões internacionais estabelecidos por estas organizações sugerem um consumo mínimo de 20 litros diários de água por pessoa, disponível a no máximo um quilômetro de casa. Isso seria o mínimo necessário para beber e fazer a higiene pessoal. Se for considerada a água para banho e para limpeza doméstica, a quantidade mínima sobe para 50 litros por dia. Grande parte da população mundial não tem acesso esse mínimo necessário, o que mostra que a questão da água está diretamente ligada à questão da pobreza.

Reunindo esforços para enfrentar o problema


O evento intitulado Improving Access to Safe Water: Perspectives from Africa and the Americas foi organizado pela Academia Brasileira de Ciências em parceria com o Instituto Internacional de Ecologia e Gerenciamento Ambiental (IIEGA), sediado em São Carlos e presidido pelo Acadêmico José Galizia Tundisi, que coordena o Grupo de Estudos da ABC sobre Recursos Hídricos.

O simpósio foi apoiado institucionalmente peal Rede Interamericana de Academias de Ciências (IANAS, na sigla em inglês), pela Rede Africana de Academias de Ciências (NASAC, na sigla em inglês), pelo Programa de Águas da Rede Global de Academias de Ciências (IAP) e pela Academia de Ciências para o Mundo em Desenvolvimento (TWAS), tendo recebido apoio financeiro da FINEP e do CNPq, através do Programa Pró-África.

Tundisi abriu o evento, no dia 13 de setembro de 2010, situando as discussões no âmbito das Academias de Ciências – como elas podem influenciar as políticas públicas referentes aos recursos hídricos nos países da América Latina e África. “A idéia é identificar problemas comuns e pensar em propostas conjuntas para responder questões sobre como transformar os conhecimentos adquiridos em políticas públicas”, esclareceu o pesquisador.

Entre os resultados esperados está o desenvolvimento de projetos integrados entre América Latina e África. “Pretendemos promover iniciativas comuns para integrar as duas redes de Academias – a Rede de Academias do Continente Africano (NASAC, na sigla em inglês) e a Rede Interamericana de Academias de Ciências (IANAS, na sigla em inglês). “Esse é o objetivo desse encontro, no qual serão apresentadas as experiências de cada país, o que possibilitará a identificação de semelhanças e diferenças nas questões relativas à água e a discussão de estratégias para enfrentar o problema”, destacou Tundisi.

Os Programas de Águas do IAP e da IANAS

O assessor internacional da ABC, Marcos Cortesão, deu as boas vindas aos participantes em nome do presidente da Academia, Jacob Palis. Informou que a ABC vem apoiando o Programa de Águas do IAP – que é a rede global de Academias de Ciências, envolvendo 104 países – já há alguns anos, e que este programa tem como um dos focos principais a capacitação de recursos humanos na área de gestão de recursos hídricos, a partir do binômio ciência-gestão.

O programa contou em sua origem com o forte apoio de diversas Academias e hoje adentra uma fase de consolidação regional, com as redes regionais de Academias de Ciências abraçando de forma mais efetiva os programas. Um aspecto importante e inovador do programa é a visão sistêmica que esse apresenta, enxergando o problema da água em sua totalidade e rompendo com a dicotomia águas superficiais e subterrâneas. .

O sucesso do programa, ressaltou Cortesão, depende da capacidade de descentralizar ações, “daí a importância de reuniões como essa, que agrega redes regionais de Academias e oferece às mesmas uma plataforma através da qual estas podem mobilizar as Academias para atuarem de forma articulada em uma questão tão fundamental para a sociedade como é a melhoria do acesso à água de boa qualidade”. Esse é um desafio no qual a ciência certamente tem um papel fundamental a desempenhar. Para Cortesão, “é uma oportunidade para que as Academias de Ciências transformem em ação o seu compromisso de vincular a Ciência com a busca por soluções para os problemas da sociedade.”

Cortesão destacou que, no âmbito da América Latina e Caribe, a Rede IANAS mantém um Programa de Águas em estreita colaboração com o IAP. Além disso, se empenha em estimular as Academias da região “para que estas transcendam um seu papel honorífico em direção a um papel proativo, assumindo um compromisso de aproximar a ciência da sociedade e de contribuir para o processo de formulação de políticas públicas.”

Concluindo, o assessor internacional da ABC observou que os conhecimentos adquiridos em um país não podem ser integralmente transferidos aos outros, porque cada região tem suas especificidades. “É preciso integrar as responsabilidades locais e setoriais no processo de utilizar os conhecimentos adquiridos – que são de natureza multidisciplinar – para antecipar problemas e oferecer soluções”, afirmou.


Jackie Olang, Marcos Cortesão e Dorothy Ngila

A matemática Jacqueline Olang é a coordenadora da Rede Africana de Academias de Ciências (NASAC, na sigla em inglês), sediada em Nairóbi, no Quênia, e apresentou a rede no evento em São Carlos.

Fundada em 2001 como um fórum independente das Academias Africanas de Ciências, a NASAC tem a função de promover consultoria qualificada para a formulação de políticas públicas, visando o desenvolvimento econômico, social e cultural dos países africanos, atuando como consultora independente para os governos; apoiar a criação de Academias de Ciências nos países que ainda não têm; apoiar o crescimento das Academias existentes. Para Jackie, “NASAC é a voz da ciência na África.”

Hoje, 17 países são membros da Rede – África do Sul, Camarões, Etiópia, Gana, Ilhas Maurício, Madagascar, Marrocos, Moçambique, Nigéria, Quênia, Senegal, Sudão, Tanzânia, Uganda, Zâmbia e Zimbábue. A rede tem buscado estimular a formação de novas Academias de Ciências na região.

Desde 2001, algumas metas foram atingidas, como a criação de programas nas áreas de Águas, Mulheres na Ciência e Educação Científica, questões que são bandeiras nacionais; a criação de um grupo de especialistas para atuar como consultores da Rede; a capacitação de pessoal no nível executivo da entidade; a ampliação da rede de membros de NASAC; o encaminhamento do processo de auto-suficiência legal.

O Programa de Águas da NASAC

Jackie Olang contou que o Programa de Águas conta com um Comitê Científico de peso e já deu início a atividades com as maiores academias da região, iniciadas com um levantamento do status regional de cada país com relação aos recursos hídricos e a criação de um banco de dados de especialistas em águas. Os recursos vêm do IAP e agora está sendo estabelecida uma cooperação com o Programa de Águas de IANAS.

Alguns bons resultados já foram alcançados, como a garantia de participação de cientistas nas decisões governamentais sobre recursos hídricos e, portanto, nas políticas de águas; a articulação com programas nacionais e internacionais; a integração em redes de águas – “precisamos atuar localmente pensando globalmente”, salientou Olang.

Outras metas foram estabelecidas e estão sendo encaminhadas, como a documentação de descobertas de água no continente africano; a identificação de parceiros estratégicos; o
compartilhamento de experiências relativas à obtenção de recursos financeiros; o incentivo para que as redes de água incluam os responsáveis pelas políticas públicas, assim como os cientistas que saíram do país , na chamada “diáspora científica.”

Para Olang, “é necessário um esforço coletivo para que todos percebam o potencial de ação das Academias através do Programa de Águas e a força das redes colaborativas”. Ela reforça a importância do Programa de Águas da NASAC: “este é um fórum para que os especialistas interajam e para que chamem a atenção das Academias de Ciências da África para os problemas da água no continente. Cada país participante tem a oportunidade de conhecer melhor os seus vizinhos e identificar problemas comuns. Além disso, é um canal para que possamos interferir nas políticas de recursos hídricos de forma a garantir que sejam desenvolvidas adequadamente.”

A coordenadora da Rede NASAC destacou ainda a importante contribuição dada pela ABC no apoio à estruturação do Programa de Águas da rede africana, salientando que o Brasil impulsionou esse processo a partir da organização de workshops regionais do Programa de Águas do IAP na África em 2006, 2007 e 2009. Em reunião realizada em agosto de 2010, a NASAC oficialmente lançou o seu Programa de Águas. “De forma unânime, as academias africanas reconheceram o papel da ABC e esperam que esta continue a apoiar a rede Africana no processo de construção de seu programa de águas”, concluiu Olang.

Parceria entre ABC e ASSAf

A geógrafa Dorothy Ngila, da Academia de Ciências da África do Sul (ASSAf, na sigla em inglês), destacou que a Academia Brasileira de Ciências foi uma das primeiras parceiras da ASSAF fora da África, e grande parceira na construção do Programa de Águas do IAP. Para ela, as duas Academias têm muitos interesses em comum e os países que representam desempenham papéis de liderança em seus continentes. “Promover a cooperação internacional faz parte das obrigações de uma Academia de Ciências. Podemos – e devemos – estimular a criação de Programas de Águas em outras Academias da África.”

Para Dorothy, um dos grandes interesses da ASSAf e da NASAC é o estabelecimento de grupos de estudos e pesquisas conjuntas com o Brasil e outros países da América Latina, ampliando os temas de interesse. “Já estamos implementando a rede Scielo em toda a África. Precisamos agora conhecer os projetos das outras Academias para identificarmos prioridades e então montarmos um banco de dados de especialistas do Brasil e da África do Sul por área de pesquisa. Esse pode ser o ponto de partida para o estabelecimento de parcerias”, ressaltou.