O Acadêmico Wanderley de Souza, ex-secretário executivo do Ministério da Ciência e Tecnologia, professor titular da UFRJ, membro da Academia Brasileira de Ciências e da Academia Nacional de Medicina e diretor de programas do Inmetro, publicou o seguinte artigo no Jornal do Brasil, em 14/8:

“Há certo consenso na comunidade científica brasileira de que o trabalho publicado por Carlos Chagas em 1909, quando descobriu o protozoário Trypanosoma cruzi e o associou a uma nova entidade mórbida, hoje conhecida como doença de Chagas, constitui a mais importante contribuição da Ciência brasileira.

O artigo foi publicado no segundo número das Memórias do Instituto Oswaldo Cruz e teve repercussão mundial devido às características da descoberta, onde um só pesquisador descreveu o agente etiológico, o seu ciclo biológico no homem e em animais experimentais, identificou o hospedeiro invertebrado como o transmissor do protozoário e ainda caracterizou a doença. A repercussão internacional pode ser avaliada pelo fato de Carlos Chagas ter sido indicado por duas vezes para o Prêmio Nobel de Medicina.

Cem anos após a descoberta, o volume 104 das Memórias do Instituto Oswaldo Cruz publica um conjunto de trabalhos que avalia os avanços ocorridos em vários aspectos da biologia do parasito e da doença de Chagas. Como parte das comemorações do centenário da descoberta da doença de Chagas, a Fundação Oswaldo Cruz organizou, ainda, um simpósio internacional e editou um belíssimo livro. O simpósio contou com participação de centenas de pesquisadores que revisaram os dados mais atuais sobre o agente biológico e a doença por este causado. Já o livro, intitulado Clássicos em doença de Chagas, reproduziu alguns dos artigos mais importantes publicados sobre o tema entre 1909 e 1968, com comentários feitos à luz dos dados atuais por pesquisadores com grande experiência nos temas revisitados.

A análise do conjunto de informações deixa claro o avanço significativo alcançado ao longo de 100 anos de intensa pesquisa científica realizada sobre o tema em todo o mundo, mas principalmente no Brasil. Algumas observações e reflexões realizadas durante o simpósio merecem destaque.

A primeira é que, graças a um intenso trabalho de vigilância epidemiológica, que levou ao quase completo desaparecimento do inseto transmissor do interior das residências nas áreas rurais e periurbanas do país, é quase inexistente a transmissão vetorial, que predominou em boa parte do século 20. Esta conquista é fruto de um trabalho de aplicação de inseticida de casa em casa, bem como da melhoria das condições de habitação. Como consequência, é hoje muito raro encontrarem-se pacientes com a fase aguda da doença de Chagas resultante da transmissão vetorial.

A segunda é que graças ao melhor controle dos bancos de sangue, também se tornou pouco frequente a doença de Chagas causada por transfusão de sangue oriundo de pessoas infectadas. Por outro lado, não avançamos no desenvolvimento de drogas efetivas para o tratamento dos cerca de 12 milhões de pacientes infectados e portadores das chamadas fases indeterminada e crônica da doença de Chagas. Também não avançamos no desenvolvimento de uma vacina protetora que evite a infecção do homem pelo protozoário. Por este motivo, é fundamental que o país invista cada vez mais em pesquisa científica nestas áreas.

Um balanço das informações disponíveis pode levar a certa visão otimista de que a doença de Chagas tende a acabar. Esta visão, que inclusive chegou a ser adotada por autoridades internacionais na área da saúde pública, não tem cabimento. É impossível erradicar completamente uma doença transmitida por cerca de 130 espécies de insetos que vivem nos mais diferentes ecótopos e com grande capacidade de adaptação a diferentes ambientes.

Por outro lado, existem cerca de 100 animais amplamente distribuídos pelo país (marsupiais, tamanduá, tatu, roedores, primatas não humanos etc) que estão infectados pelo Trypanosoma cruzi, permitindo a manutenção de um ciclo ativo de transmissão entre estes animais reservatórios e os insetos vetores. Para dar um simples exemplo, registro o fato de que este ciclo está ativo a alguns quilômetros da cidade do Rio de Janeiro, na reserva de Poço das Antas. Por outro lado, cresce a cada ano, o aparecimento de casos de doenças de Chagas na Amazônia, inclusive com casos agudos e fatais.

Por último, merece destaque o crescimento recente do número de casos de infecção humana por via oral em decorrência da ingestão de caldo de cana ou de suco de frutas diversas como açaí (na Amazônia), goiaba e vinho obtido de palmáceas na Venezuela e na Colômbia, contaminados com o protozoário responsável pela doença de Chagas. Muitos destes casos foram fatais. Logo, é fundamental ampliar as pesquisas na área e manter vigilância epidemiológica permanente.”