O Acadêmico Adalberto Fazzio, reitor pro-tempore da UFABC e professor titular do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP), publicou no Jornal da Ciência o artigo abaixo, conjuntamente com o professor associado do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) e vice-reitor pro-tempore da UFABC Armando Milioni.
“A observação da estrutura curricular e da grade disciplinar de nossas escolas de engenharia é suficiente para constatar que elas ousam pouco, mantendo-se fiéis a um estilo de formação ortodoxo que talvez tenha funcionado durante algum tempo, mas que não responde às demandas da sociedade do conhecimento do final do século XX e que deverá ser a tônica do século XXI.
De acordo com o Instituto de Estatísticas da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – Unesco (http://www.uis.unesco.org), no final de 2004, imediatamente antes do formidável processo de expansão das Instituições Federais de Ensino Superior (Ifes), o Brasil tinha cerca de 18 milhões de jovens com idades entre 18 e 24 anos, faixa etária universalmente aceita como aquela em que se deveria estar matriculado em um curso de nível superior. Todavia, apenas três milhões deles o faziam, ou seja, 16% do total.
À época, esse percentual era de cerca de 60% na Argentina e em Cuba, 50% no Chile e 25% no México e na Colômbia. Isso para manter a comparação entre países latino-americanos. Em outro patamar de referência situava-se, por exemplo, a Coreia do Sul, com mais de 90%.
A inquietação que esses números causam aumenta se o foco da análise for concentrado nas engenharias. Enquanto 18 milhões de brasileiros se transformavam em menos de 350 mil estudantes de engenharia, nove milhões de mexicanos da mesma faixa etária se transformavam em 450 mil e 3,5 milhões de coreanos, em um milhão. Ou seja, partíamos de um potencial populacional que era o dobro do México e mais de cinco vezes o da Coreia para atingir um número de estudantes de engenharia 30% inferior ao do México e 65% inferior ao da Coreia.
Tudo isso já é suficientemente grave à luz do diagnóstico comum de que o número de engenheiros formados no país constitui um de nossos mais sérios gargalos para o crescimento sustentável ao longo dos próximos anos. Há, todavia, outro aspecto do problema que aumenta a sua gravidade. Ele diz respeito ao tipo de engenheiro que estamos formando.
A observação da estrutura curricular e da grade disciplinar de nossas escolas de engenharia é suficiente para a constatação de que elas ousam pouco, mantendo-se fiéis a um estilo de formação ortodoxo que talvez tenha funcionado durante algum tempo, mas que não responde às demandas da sociedade do conhecimento do final do século XX e que deverá ser a tônica do século XXI.
Com um projeto acadêmico inovador, a Universidade Federal do ABC (UFABC) se dispõe a enfrentar esses problemas. A instituição oferece 1.500 vagas em seu vestibular. Todos os alunos que ingressam na universidade cursam, nos três primeiros anos, um bacharelado comum em ciência e tecnologia (BCT).
Ao seu término, com mais dois anos de estudo, cada aluno pode concluir pelo menos uma das oito modalidades de engenharia. Se mil deles o fizerem, a UFABC será a maior formadora de engenheiros dentre todas as instituições públicas de ensino superior do Brasil.
Além disso, a estrutura curricular do BCT é totalmente inovadora. As disciplinas não evoluem sobre os recortes ortodoxos (cálculo, física, química etc.). Concebidas para valorizar os fundamentos das ciências, elas evoluem ao longo de seis eixos de formação notadamente multidisciplinares, quais sejam: a) Estrutura da Matéria, b) Energia, c) Processos de Transformação, d) Informação, e) Representação e Simulação e, finalmente, f) Humanidades.
O número de disciplinas obrigatórias não chega a 50% do total. Cada estudante compõe livremente o resto de seu currículo, podendo fazê-lo de maneira eclética ou focada, de acordo com seus interesses pessoais, mas estimulado por uma oferta de disciplinas que o convida a debruçar-se sobre as grandes questões do século XXI, como meio ambiente, pobreza, energia, novas tecnologias e ciências da mente.
Numa estrutura voltada mais ao ensino do aprendizado do que à simples transferência de conhecimento, os futuros engenheiros da UFABC aprendem os fundamentos científicos ao lado de futuros físicos, matemáticos, químicos e biólogos. E todos os alunos recebem uma forte formação humanística caracterizada pela presença de um eixo de experiências pedagógicas de natureza, propositadamente, não técnica. Afinal, a Ciência e a Tecnologia (C&T) geram atos humanos praticados no mundo e é nele que produzem resultados materiais.
A produção e a distribuição social da riqueza gerada pelas técnicas industriais que decorrem de conceitos científicos não são fenômenos que se esgotam em si mesmos, e demandam análises e estudos.
De fato, a C&T desenvolvida numa sociedade é o produto do que ela pensa, do que ela supõe ser, do que ela preza e quer reproduzir, do que rejeita e quer eliminar, do que prioriza, do que esconde, do que admite vender e comprar, do que julga impossível transformar em moeda, da sua moral, do modo como se organiza coletivamente e de como se vive individualmente.
C&T, enfim, não são produtos sem alma de uma mente transcendental que as inventaria se os homens em carne e osso não existissem. Entendê-las pressupõe, pois, que nos entendamos, e produzi-las sem a crítica de nós mesmos, sem o esclarecimento daquilo em que ela resulta, é exercício cego.
É com isso em mente que na UFABC se busca formar engenheiros e cientistas, coerentemente com as tendências observadas nas melhores universidades do mundo. Afinal, o grande sucesso das engenharias do Massachusetts Institute of Technology (MIT) pode ser resumido nas frases de dois de seus ex-dirigentes: Não podemos formar bons engenheiros se não tivermos uma grande ciência (K. Compton) e Escolas de engenharia devem desenvolver fortes programas em humanidades e ciências sociais (W.K.Lewis).